O Desenho como iluminação do sentimento e a sombra como eliminação da persona, num processo de individuação (do Desenho) de Jaime Silva
Resumo: Este artigo contextualiza-se na exposição de desenhos intitulada “Cadernos de Sombras”, realizada por Jaime Silva, em Janeiro de 2011, na Sociedade Nacional de Belas-Artes. Sombra é a palavra-chave, por excelência, que dirige a expressão neste Desenho e indicia algo que guardamos e que queremos comunicar. Neste contexto, faço uma associação com o conceito de sombra em psicanálise e desenvolvo uma abordagem tendo como base esta área do saber.
Introdução
Em arte, toda a conexão de coisas tem como efeito/fim harmonizar as realidades, repondo-as no sistema em que sempre existiram originariamente na Natureza, recriando esse sistema natural num sistema mental do autor. Em tudo isto, a intersubjectividade no contexto biunívoco do diálogo entre dois artistas é basilar. É nessa condição que me posiciono para a análise do Desenho de Jaime Silva. Na situação de observação, em contacto com (os desenhos d)o autor, recriou-se o sistema ontológico, adormecido na realidade instintiva em que vivemos e que vamos abandonando em sentido contrário ao do encontro da realidade intelectual.
Jaime Silva licenciou-se em pintura na Escola Superior de Belas Artes do Porto em 1973. Foi membro fundador do grupo Puzzle, em 1975. Foi Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, 1977 e 1978. Foi professor de Pintura no AR.CO entre 1983 e 1987, Lisboa. Desde 1987, é o professor responsável do Curso de Pintura da Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa. É Director artístico da Galeria Municipal de Montijo desde 1999.
Remetendo-nos ao título da exposição – Cadernos de Sombras – expor-se-á a análise deste grupo de desenhos, os quais, pela unidade consolidada, serão designados por “o Desenho” (Figuras 1 a 5).
A sombra é, segundo C. Jung, o reduto daquilo de que não gostamos, aquilo que nos deixa inconfortável e que reprimimos, mas é também um depósito de energia instintiva e uma fonte de energia criativa. Noutra ordem de abordagem, na realidade da percepção, a sombra é um indício de uma realidade, e nunca a realidade. Mas estes conceitos, quando referentes à psicanálise, serão entendidos segundo as definições de C. Jung (apesar de, por vezes, serem associados a outra ordem de abordagem). Mais propriamente, de acordo com C. Jung, entendemos aqui que a sombra é a realidade que a persona oprime; uma realidade que, à medida que vai sendo descoberta/consciencializada, dá lugar à aproximação do sujeito ao seu self, à verdade integral do eu. Nesta óptica, a sombra pode ser, realmente, o indício da verdadeira realidade. E esta, por sua vez, quando transformada em máscara, ou melhor, persona, estabelece-se como o indício da verdadeira sombra: uma persona forte indicia uma sombra densa.
Não se pode ignorar que este Desenho, de Jaime Silva, inclui figuras, mesmo que, muitas vezes, escondidas nas sombras, e das quais apenas se vislumbra o aspecto. Aqui, as figuras contextualizam-se na recorrência aos arquétipos, que são, na concepção de C. Jung, formas sem conteúdo que servem para organizar ou canalizar o material psicológico.
Figura 1 – Jaime Silva, desenho formato A4, datado de Dezembro de 2008.Caderno de sombras nº. 0, tinta gráfica sobre papel.
É neste contexto analítico que se pretende abordar o Desenho de Jaime Silva. Todavia, o desenho tem uma identidade que nos permite chamá-lo desenho e não outra coisa qualquer, como, por exemplo, representação (sendo que o desenho é representação e a representação pode não ser desenho). Neste sentido, estas representações têm uma forte componente de desenho. Apesar de não querem representar formas identificáveis com a realidade que se pode ver, representam uma energia tão importante como a significação.
Figura 2 – Jaime Silva, desenho formato A5, datado de Março de 2008. Caderno de sombras nº. 6, tinta gráfica sobre papel.
Falando-se concretamente nestes desenhos-objectos, neste Desenho circunscreve-se a luz através da sombra; mas, melhor do que isso, liga-se a luz à sombra, unificando as formas numa mancha cuja situação geográfica é permitida pela existência de luz que a inscreve.
Se no Desenho de Jaime Silva somos confrontados com uma forte luta entra o claro e o escuro (a que o autor prefere designar Sombra – o que faz toda a diferença sobre a explicação dos desenhos), vemo-nos a nós próprios, na procura da iluminação do momento de experiência de vida, sem saber para onde conduzir a nossa atenção/energia de consciencialização: para o que (aparentemente) nos “elimina” a vida, pela (semi)ocultação da realidade: a sombra; ou para o que (aparentemente) nos “ilumina” a vida, pela possibilidade de vermos o que existe fora de nós: a luz. Por outro lado, todo o objecto que se interponha na luz (basta que tenha matéria, logo) deixa o seu testemunho de existência; se bem que para existir não é estritamente necessário que tenha matéria, pois, por exemplo, os sentimentos existem e não são constituídos por moléculas. Não é só a matéria que faz “sombra” e dá a sua prova de existência; também os nossos conteúdos internos que, segundo C. Jung, recalcamos, são a origem da sombra existente.
Figura 3 – Jaime Silva, desenho formato A4, datado de Novembro de 2008. Caderno de sombras nº. 0, tinta gráfica sobre papel.
Neste Desenho, mais do que uma luta de separação entre a luz e a sombra, há uma procura da sua conciliação. O sujeito condicionado pela, designada por C. Jung, persona, na qualidade de autor, terá que fazer um trabalho, não de colocar a sombra e a persona em locais confinantes, mas de seguir o seu percurso de individuação (sem que a persona se oponha à sombra), onde tudo se concilia: onde a luz e a ausência da mesma realidade existem originariamente com papéis igualmente construtores.
Coloca-se, neste momento, um paradoxo que merece a nossa atenção: o desenho, como pensamento, ilumina e elimina o sentimento, uma vez que a sombra é ao mesmo tempo a prova da existência de um conteúdo e eliminação do mesmo; pois é, respectivamente, o indício dos conteúdos interiorizados pelo autor e a revelação de que existe uma realidade de cuja existência apenas conhecemos a sombra, dada a nossa incapacidade de nos arredarmos desta e de nos aproximarmos da realidade.
Figura 4 – Jaime Silva, desenho formato A5, datado de 24 de Fevereiro de 2009. Caderno de Sombras nº. 11, tinta gráfica sobre papel.
À primeira vista, parece prevalecer a eliminação da iluminação, em que a sombra, a matéria (que são os sentimentos, cuja prova não pode ser o branco do suporte, mas sim a marca que lá se deixe, o negro) que ocupa/macula a luz/imaculada, é mais importante do que o espaço que é ocupado (o desocupado susceptível de ser ocupado, o espaço em si onde se pode guardar os sentimentos, o imaculado, o branco). O autor faz, assim, uma ligação entre o espaço (branco/imaculado) e a matéria (negra/maculada); faz uma conciliação entre a potência (mental/o suporte à espera de receber uma intervenção, o branco) e a respectiva actualização (reconstrução/recriação das memórias pelo desenho negro).
Segundo esta argumentação, num paradoxo aparente, o autor faz uma iluminação intelectual (em que a criação do desenho é uma forma de pensar o sentimento) eliminando a luz com a sombra negra, isto é, racionalizando a emoção, transformando-a em imagem comunicante. A razão, portanto, assume o papel de sombra negra, que põe ordem ao flutuar das emoções instintivamente libertas. Mas o autor não deixa de ter aquelas emoções; antes desprende-se delas, para que outras ocupem o seu lugar, tentando compreendê-las, dando forma aos sentimentos no fenómeno da consciência, ou seja, tornando as emoções consciencializadas, É assim a dinâmica da relação dialéctica sujeito-meio(-sujeito). A razão aqui não funciona como ordenação abstracta da realidade, mas como organização universalizante da mesma. Neste Desenho apresentado, a sombra é a materialização da energia espiritual, é a possibilidade de o autor (como ser individual) circunscrever a realidade cosmogónica (a que pertence como partícula de um sistema) num tempo e espaço cujos limites são a forma desenhada; e sendo esta o sentimento veiculado por meios racionais, porque materializados e circunscritos, mas não racionalizados no sentido de os opor à sensibilidade.
Figura 5 – Jaime Silva, desenho formato A5, datado de Fevereiro de 2008. Caderno de sombras nº.4, tinta gráfica sobre papel.
Mais do que a dicotomia, neste Desenho, percebe-se uma dialéctica entre os opostos: branco/ausência do branco. Presume-se que na elaboração do Desenho tenha havido uma luta entre o negar e o afirmar, entre o dar a visibilidade/iluminar e o de, consequentemente, lha retirar/eliminar. Aqui, apenas se vislumbra algo que se quer dizer mas que não interessa literalmente fazê-lo; talvez seja importante, apenas, mostrar que existe a intenção de o fazer: o que se consubstancia numa energia da acção criativa: a dialéctica iluminar-eliminar. É o processo de canalização dessa energia que interessa ao autor e que é propulsionada pela vontade de poder “dizer”, ou melhor, pensar o sentimento, numa palavra, tomar consciência dele, transmitindo a prova de que existe.
Desenhos são formas. O que as gera são memórias carregadas de emoção e afectos (que são formas de energia restauradoras da vida). Mas o que é transmitido pelas formas não são as memórias e os afectos do autor, são a provocação do cogitar do observador das memórias que pertencem ao seu próprio ser autobiográfico e à respectiva forma de pensar e ver o Mundo. O conteúdo, a mensagem e a intenção não passam da projecção do que decorre na própria mente de observadores; é, de facto, um acto subjectivo, que neste terreno de análise é evocado para explicar que tudo o que o Outro profira sobre os desenhos do Autor não é senão a projecção do eu e que podem eventualmente coincidir com a realidade do Autor; isto, na medida em que os sentimentos são universais. A forma como associamos os sentimentos às realidades depende da história de cada um. Todo este processo é fundamental para gerar a comunicação (e uma intersubjectividade) que nos permite assumir uma identidade considerando que existem muitas outras para fora do sujeito.
Tudo isto contextualiza-se num percurso de reposição/recriação/renovação de riscos, que impelem o autor à descoberta do ainda desconhecido. A descoberta gera uma emoção que nos conduz a outra descoberta. O que só é possível numa constante revisão dos alicerces, socorrendo-se sempre de um comportamento homeostático. O desenho, como a criação em geral, coloca-nos numa situação de iminente descoberta. Esse confronto provocado pelo primeiro risco que se faz num suporte é a origem da necessidade se descobrir algo até então desconhecido. A particularidade do desenho é que cada gesto é o início/desafio para uma descoberta. Mas este fenómeno acontece na sucessão de gerações de Desenhos, o que é muito visível no Desenho de Jaime Silva.
Não se sabe se o objectivo é macular ou, pelo contrário, expurgar o maculado, purificando a mente, de uma forma catártica. Não se sabe, nem é necessário saber, porque, no que concerne ao desenho, o saber é uma faceta que se reduz ao fazer-se comunicar (muito mais do que o saber fazer); se esse acto resulta no processo de catarse ou não, só se verifica na medida em que o Autor, com a fé nesse meio de expressão, mantenha a necessidade de o usar para se comunicar (entendendo aqui a comunicação como meio de veicular o pensamento inerentemente sentido). A permanência deste modo de expressão deve-se ao instinto correspondente ao coeficiente que existe entre a exteriorização de uma vontade (de criar) e a criação (de uma vontade); é, na verdade, o querer saber-se, como se se quisesse conhecer a que sabe o próprio eu, isto é, se o sentimento é nosso ou é, na realidade, aquela projecção que fazemos no Outro. Mais uma vez: a inexorável existência da inter-/intra-comunicação.
Texto de Luís Filipe Rodrigues aquando do Congresso anual Criadores sobre outras Obras, CSO'12
Publicada na Revista semestral Estúdio V, verão 2012 da Faculdade de Belas Artes de Lisboa (PDF aqui, págs. 55 a 61)
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