um texto de Luís Filipe Rodrigues
A arte não é universal. Se perguntarmos
a cinco pessoas de cultura ocidental o que pensam sobre uma obra de arte, as
respostas serão diversas. Se perguntarmos também o mesmo a mais cinco pessoas,
mas, de cultura oriental, as respostas poderão ser mais diversas. Se
perguntarmos o mesmo a uma pessoa hoje e daqui a um mês, ou, mesmo, agora e
daqui a uma hora, a resposta poderá ser diferente. Tudo depende do momento, dos
valores, das referências culturais (e eventualmente políticas e religiosas), da
situação social, etc. O discurso que cada um profere acerca do que entende sobre
determinada obra é subjetivo, mesmo que dê lugar a um processo de
intersubjetividade. É aqui que me posiciono.
No caso de os diferentes discursos se poderem
uniformizar, não significa que a obra de arte é universal; significa que a obra
poderá comunicar algo de implicitamente universal somente ao nível latente;
significa que as pessoas, desviando-se da sua autobiografia, das suas idiossincrasias,
do seu self, da sua identidade,
procuram a sua inclusão no âmbito de um discurso normativo, criado pelos
historiadores, críticos de arte e pedagogos.
Por outro lado, estes discursos
dificilmente coincidem com o que os próprios artistas pensam (se é que pensaram
nalgum discurso particular) no processo-em-si de criação do seu objeto. O
artista elabora o seu pensamento paralelamente, não necessariamente de modo
literal em relação à sua obra. Ao contrário do que o artista poderá ter sentido
e que lhe possa ter estimulado o pensamento de alguma consideração sobre certas
coisas, os discursos dos agentes do sistema artístico são elaborados
apoditicamente e têm como base inferências e injunções analíticas que se
coadunam num sistema. Caso estas tenham o assentimento do artista, poderá ser mais
devido a questões de empatia afetiva que todos partilhamos, uns mais do que
outros, que organizam as nossas ideias de acordo com valores comuns, mas não a
tradução analítica e concreta de uma certa obra. Receio que seja neste contexto
que vá fazer esta minha apresentação.
O discurso do artista, diria, discurso
criativo subsidiário da prática artística, é basilar e é inédito, sempre que
aconteça a partir de uma fratura com os discursos antecedentes e sob a forma
prática. O discurso sobre a arte é autossuficiente dentro do sistema no campo
da arte, e, quando desconstruído, dá lugar a outro discurso, alicerçado em
matrizes só aparentemente diferentes, tudo depende das correntes de crítica
artística. A matriz comum originária e verdadeira é a criatividade como
processo de expressão libertadora do pensamento herdado, normativo e limitador.
Refiro-me à criação artística como compósito de um discurso imanente onde o artista
faz uma arqueologia do seu ser. É assim que contextualizo Jaime Silva e me
contextualizo a mim enquanto apreciador do que conheço da sua obra e do seu
discurso artístico concreto em devir.
O artista é um ser livre, se para isso
trabalhar, se se apropriar de discursos e, depois de os elaborar, criar um seu
através da criação. Com a designação ser-livre quero dizer: possibilidade de dizer subliminarmente
coisas que, no caso de fluírem manifestamente, seriam sujeitas a juízos de superfície
que poderiam ferir realidades de profundidade ao nível emocional. A
estética é o resultado desse trabalho. Mesmo a obra mais concetual apresenta-se
com referência a uma forma com conteúdo latente, sob pena de, num caso extremo,
se inclinar para o campo da filosofia em detrimento das artes plásticas como
objetos, como aconteceu, de certo modo, no concetualismo.
A forma artística é uma combinação de
informações a que o artista recorre por associação livre, com efeitos na sua
própria liberdade; diria, numa palavra, da sua própria felicidade. A obra é o
veículo metafórico através do qual se dizem coisas profundas sem autocensuras;
numa palavra, expressam-se sentimentos através de combinação de informação
visual, estruturado de acordo com um discurso orientador mas não extrínseco.
São poucos os que, como Jaime Silva, procuram esta verdade na arte, e com a
coragem de envolver-se em transformações do seu próprio trajeto.
Teses e teorias extrínsecas que os
artistas possam advogar são realidades paralelas ao eu mais profundo, embora
seu corpo comum e convergente queira perceber o eu do autor num trajeto em direção seu self. É este o trajeto que estimula a criatividade e a expressão,
na conceção da obra de arte; é a sua razão originária; é a matéria-prima suscetível
de ser contagiada. A procura do self
vai recorrer a energias da fonte afetiva e ao processo de exteriorização dessas
energias. A fonte do afeto, em relação ao Mundo que nos envolve, não se coaduna
com a normalização de discursos, pois esta é adversa à via da intuição
sensível. Tratar-se-ia da racionalização do fluxo emotivo da vida, o que Jaime
Silva contraria e inverte.
Como diz Steiner em relação a Heidegger,
a teoria deste filósofo só seria verdadeiramente compreendida se alguma vez
tivéssemos a hipótese de assistir às suas aulas e palestras, tal era a eficácia
do fluir oral expressivo do seu discurso, abdicando da estruturação racional a
que obriga a escrita. Presumo que o mesmo acontece com a obra de arte in loco, pois a realidade, ou as ideias,
quanto mais diretas, mais suscitam a sensibilidade (à semelhança do espetáculo).
O espetáculo visto ao vivo ou transmitido através de um texto não são o mesmo. O
contágio acontece por via de um fenómeno diverso; no contacto com a obra, há um
contágio subliminar que proporciona uma comunicação sem censuras nem
preconceitos – ou espera-se que tal não aconteça. Ou seja, sintetize-se a
experiência, abra-se a comunicação de aspetos emocionais, e desviemo-nos de
sistemas fechados. Assista-se à obra de arte de Jaime Silva e elaborem-se
discursos criativos sobre esse espetáculo. Não fiquemos pela qualificação de
gosto/não gosto, nem pela categorização convencional das suas obras. Adira-se
ao fenómeno do espetáculo cujo encenador é o artista Jaime Silva e cujos atores
são suas obras.
Com os meus alunos, faço uma experiência
heterodoxa: peço-lhes que escolham, não uma obra de que gostem (pois isso
reduziria a análise à palavra “bonito”) mas, uma obra que lhes crie estranheza,
incómodo ou embaraço, ou, numa palavra, que suspenda o pensamento, que
desconstrua o pensamento prevalecente, e que, depois, traduzam por palavras o
preenchimento do vácuo criado. Podem acreditar que os resultados são
surpreendentes, pois o discurso, a pretexto de um objeto, revela muito dos
valores, medos e desejos dos alunos; liberta-os dos obstáculos, pois falam de
tudo isto sem autocensuras, uma vez que remetem as suas considerações para um
objeto externo, embora se refiram ao(s) seu(s) objeto(s) interno(s). Isso
acontece porque o discurso é tácito. Falar dessas estranhezas é mais indireto
do que parece, pois o processo faz-se no sentido da profundidade onde existem
os conteúdos mais ou menos inconscientes.
Sendo assim, não me é fácil falar de uma
obra, abrangente como o prova o percurso de Jaime Silva até ao momento, sem que
incorra em algumas limitações analíticas que façam o justo juízo ao que nos dá
a conhecer, pois a sua obra remete para uma complexidade difícil de explanar. Mas
é certo que essa complexidade é despertada, mesmo que dificilmente verbalizada.
O artista é um depósito que, mais do que
absorver coisas bonitas, atrai as coisas estranhas, incómodas ou embaraçosas,
dada a postura de criar necessidade de se readaptar a novas experiências,
através da reformulação e alteração das ideias convencionais e consensuais. O
artista não procura nada que reforce o seu conforto, pelo contrário, procura
zonas de desconforto do inconsciente, pois são estas que desestabilizam a
plataforma da consciência, obrigando-o a ajustar o seu pensamento à permanente
mudança de emoções e à permanente evolução da sua própria consciência. Isto é
uma espiral inevitavelmente progressiva, que pode ser mais lenta ou mais
acelerada, conforme, respetivamente, nos acomodarmos ao que temos ou nos
expusermos a circunstâncias incómodas, ou, melhor novas: é isto que move o processo
criativo de um artista: arriscar, fazendo pontes com as coisas escondidas na sombra. O bonito é um estádio neutro; a circunstância de estranheza, de
incómodo ou de embaraço é movediça – o suficiente para desfazer a estabilidade
atrofiante. Tudo isto pode passar por pôr em causa a consensualidade da arte da
atualidade, seja a dos outros artistas seja a sua própria prática artística,
como me parece que tem feito Jaime Silva, apropriando-se dos discursos que
surgem, criando uma versão sua, crítica e inédita, para além de se debruçar
sobre as estranhezas e, dessa transformação, resultar algo de esteticamente
sensível, complexo e inovador.
A criação vai transformar as
inseguranças e inquietações – que procuramos – em quietações temporárias, pois
é a partir deste fenómeno que abalaremos os alicerces para reformular a
edificação do processo criativo que nos conduz para a fugaz estabilidade. Como
é fácil de constatar, Jaime Silva não se acomoda a projetos longos e estáveis.
Perante quietações, muda de rumo e de posturas consensuais (mesmo que individuais),
e arrisca noutras metas, riscando, mesmo, as que conseguiu até ao momento.
Risca, porque rasura as ideias que o possam perigosamente arrumar num estilo –
e ainda bem, pois isso o imobilizaria em termos de inovação artística. Tudo tem
um contexto; e quando Jaime Silva adere a um entendimento da arte vigente não o
faz pela procura de inclusão ou reconhecimento, mas para entrar no corpo
discursivo, para melhor o compreender e o poder alterar a partir do seu cerne,
de seus valores e autobiografia, na prática criativa.
Alguém me perguntava, num congresso onde
expus a minha visão sobre os desenhos que Jaime Silva expôs na Sociedade
Nacional de Belas Artes de Lisboa (na exposição “Cadernos de Sombras”), o que
pensava eu em relação à dualidade figuração/abstração. Nesse momento,
pareceu-me uma intervenção inócua, pois indiciava a necessidade de
contextualizar a sua obra em conceitos estereotipados, próprios da catalogação
usada para os projetos artísticos de cada fase dos artistas. Mas hoje penso-a
dando-lhe maior importância. Jaime Silva percorre a linha entre esses dois
polos, algumas vezes explorando-os impondo-lhes distância. Mas não procura, do
meu ponto de vista, respetivamente, uma externalização de significados que se associassem
à figura, nem uma expressão catártica associada ao expressionismo abstrato.
Penso que Jaime Silva pretendeu aproximar-se do que o fizesse sentido para si
(o que é diferente da procura de significados), isto é, no sentido de que
prosseguisse a expressão das emoções criadas pela estruturação de seus
pensamentos sobre o mundo envolvente. Qualquer pensamento está carregado de
afetos, de aproximação ou distanciamento da experiência com o mundo onde
vivemos. É essa a fonte sobre a qual a matéria-prima é moldada.
No que disse até agora, não mencionei
nenhuma obra em concreto; não fui figurativo, embora tenha falado de uma certa
realidade. A obra in sito produz um
espetáculo vivido individualmente de acordo com as idiossincrasias de cada um.
É da experiência desse espetáculo que falo. Cada um vive o espetáculo
individualmente. Portanto, embora não tenha sido figurativo no meu discurso, tentei
ser concreto no que disse, pois falei do que senti no espetáculo a que
assisti(o) ao ver as suas obras. Ser figurativo num discurso é arriscado, pois
ancora as ideias acerca de uma emoção, e esta tem de ser livre e ser vivida
pelos que assistem à obra de arte, de acordo com o discurso de livre associação
de cada um.
Num caso extremo, na poesia, fala-se de
coisas que nos sensibilizam, e as ideias flutuam conforme a sensibilidade e
constituição interna de cada um. As ideias, aí, associam-se por ligações
afetivas e através de conteúdos inconscientes. Na maioria das vezes, os nossos
juízos de gosto têm a ver com isso, e o incómodo ou estranheza, de que falava
antes, também. A perceção analítico-descritiva de uma obra não me interessa
muito, interessa-me mais a receção espontânea, onde as associações livres
ocorrem e estimulam o pensamento e a criação. Falo como artista, claro, e é
nessa condição que constato que as temáticas de Jaime Silva flutuam livremente
sem quererem o reconhecimento, apenas se guiando pela associação intuitiva que
o artista faz com a reconhecível profundidade.
Não tratei, aqui, de falar da norma
académica nem da norma do sistema crítico com referência aos trabalhos que
conheço de Jaime Silva. A vida criativa de um artista rege-se pela experiência
diferenciada, não sobre postulados pré-estabelecidos. É isso que a enriquece e
que lhe permite as descobertas. Daí, a procura de reformulação das ideias
acomodadas e daí a procura de zonas de desconforto. É esse o meu enquadramento
da obra de Jaime Silva. Se essas riquezas e descobertas suscitarem a palavra
belo, fecham o ciclo do fluxo artístico. O belo não se procura, como se de uma
decoração se tratasse. O belo, quando existe na arte, é o resultado da transformação
das estranhezas que criaram instabilidade. Se o fenómeno de vida criar uma tal
instabilidade que nos incite a criar, processa-se a continuidade e abertura
desse fluxo, transforma-se o instável em (temporariamente) estável. Penso que é
isso que presenciamos e é isso que desenvolve a pesquisa no fenómeno criativo.
Mesmo criando coisas a que possamos atribuir a classificação de belo, isso pode
acontecer a partir de uma regeneração do conceito; não a partir de um acordo
com o que até então assim foi classificado.
À semelhança do perigo da palavra
“universal” (que mencionei no início), também existe o perigo da palavra
“absoluto”. Ambas desautorizam o pensamento e ambas fragilizam a criação de uma
obra de arte. Na realidade, são metas impossíveis, a não ser com referência ao
superego ou alter-ego e ao extremo fundamentalista dos valores. Muitos artistas
não procuram estes extremos, pois isso levá-los-ia a uma derrota precoce, dado
indicar um fim concreto e inultrapassável. O artista evolui, sempre que,
aproximando-se da ameaça do universal e do absoluto, abrir frechas no sentido
do particular, do instável, da metamorfose e do movimento. É assim que
caraterizo o percurso que podemos experimentar através destes testemunhos, dos
trabalhos de Jaime Silva. Numa palavra, a virtude de aprofundar uma
investigação artística, ao ponto de a fortificar e consolidar e, logo a seguir,
ter a coragem de a pôr de lado para trilhar outro caminho para outras
descobertas, originando recomeços constantes.
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