Cadernos de Sombras : Os Contornos da Miragem


Cadernos de Sombras : Os Contornos da Miragem

See where the landscape glows and flares
Lit by the beacons desire - 
As faces grouped about the fire
Give back the light that is not theirs.
Dick Davis


Algumas imagens da Exposição "Cadernos de Sombras" que decorreu na SNBA de 14 de Dezembro de 2010 a 15 de Janeiro de 2011

Os trabalhos que Jaime Silva reuniu e expõe sob o título «Cadernos de Sombras» denotam alguns ecos de uma linha de criação artística iniciada na década de 90 em que o pintor, em formas simples e esquemáticas, geradas através de traços finos mas com expressiva exuberância, apostava numa abstracção com fortes sugestões figurativas. O que nessas obras, ao primeiro contacto, poderia dar uma impressão gestualizante, revelava, a uma análise mais atenta, um seguro caminho de premeditada reflexão. Havia em tais desenhos, como então escrevi, «uma estrutura sacudida pelo pensamento», frase que se aplica plenamente ao que agora se apresenta nesta exposição, e que, na diversidade dos seus contornos, vive da disciplina determinada pela ideia que o gerou. Há nestes desenhos, criados com meios de grande simplicidade (esferográfica e tinta rotring brilhante sobre papel), uma forte majestade, apesar do seu carácter algo intimista, das suas dimensões contidas, de uma reserva que a inteligência comanda, orientando o traço de acordo com uma predeterminação que se pressente. A ideia destas formas vem da terra, da pedra, da rocha, do volume que respira numa luz ausente, e que as dá como suas projecções, nos contrastes que as revelam como espessas sombras, com todo o historicamente longo percurso de significados que essa palavra tem, quer na filosofia, quer na história da arte.

É sabido que, segundo um mito muito antigo, trazido até nós por Plínio o Velho, na sua História Natural, a origem da arte da pintura estaria na delimitação da sombra da figura humana no solo ou numa qualquer superfície. A história da sombra e da luz confunde-se assim com o próprio percurso das artes visuais. A pintura teria nascido, não da observação directa da natureza, mas da «captura» do lado virtual das coisas, da sua projecção, do seu duplo. A imagem do traçado da sombra seria então uma representação de segundo grau, uma imagem da imagem, tal como em Platão, para quem o reflexo afasta desde o início a arte, da realidade, conferindo autonomia àquela e colocando-a no plano da pura representação.

A sombra vista, não como o oposto da luz, mas como epifenómeno, realidade segunda, fantasma, «after image», é a orientação possível de um pensamento que não pode enfrentar a sua fonte. Ela é o fugidio, o irreal, de certo modo a segunda natureza das coisas, o seu eco, o que a aproxima simbolicamente do «outro lado» do mundo, do reino da morte, na mesma medida em que a ausência de sombra seria a condição da imortalidade, o que levava os gregos a celebrarem sacrificialmente os seus mortos ao meio dia, a hora vertical, imagem da própria eternidade. O meio dia é, com efeito, o limite do movimento ascendente da luz, o zénite, o ponto a partir do qual o dia começa a declinar, o momento estático em que a identidade, anuladas as suas projecções, as suas multiplicidades, se imobiliza no Uno. Paul Valéry disse-o, no seu modo lapidar, nestes versos:

Midi là-haut, Midi sans mouvement
En soi se pense et convient à soi même.


Cognoscitivamente a sombra aproxima-se assim do mito, representação da representação, eco do verdadeiramente inacessível. Os telúricos desenhos dos «Cadernos de Sombras» dão-se ao nosso olhar quase à maneira de esboços, de modo aproximativo, configurando uma poética gráfica do maciço, da rocha, da montanha, sugerindo o jogo das fissuras, das fragas, aparecendo como a antítese da brancura: o vale, a planície, o céu. Eles transmitem, na sua singeleza, uma ordem cadastral: o sabor das anotações do levantamento orográfico. No que aqui vemos, não há porém qualquer cedência a registos naturalísticos, o que se pretende é reduzir o visual ao esmagamento da ideia, à condensação em que consiste a sua apropriação pela nossa consciência, ao abstracto da representação. Sabemos, desde Heráclito; que «a Natureza propende à ocultação» , mas estes desenhos parecem ilustrar o ensinamento de Francis Bacon de que: «Os segredos da natureza se revelam melhor sob a tortura das experiências do que quando seguem o seu curso normal» Não estamos assim sob o signo do reflexo, mas da reconstrução. Melhor: da ilustração de uma ideia. Ilustração onde cabe uma certa inquietação, onde o recorte, a silhueta revela a anfractuosidade do próprio pensamento, a forma irregular e quebrada - fractal -, «entre o domínio do caos descontrolado e a ordem excessiva de Euclides» Latência perceptiva e mental ao mesmo tempo, é o que estes desenhos nos trazem na sua pregnância simbolizante contra o fundo bem mais enigmático da superfície branca, dessa indefinição larga, nervosa e mais crispada na sua neutralidade do que as formas densas, largas e pujantes que nela se inscrevem. É que essas formas, enquanto sombras são agentes de desmaterialização, como o são, em Pierre Soulages, as massas escuras que invadem a tela e nela se fixam carregando apenas o peso de uma libertação espiritual.

Ao olhar estes desenhos, que vivem do contraste, da encenação da dúvida, do chiaroescuro que tem sido o fio condutor de toda a representação na arte ocidental, entendo que o que nos é aqui proposto, são formas diluídas, de dramatismo contido, como se o peso da luta entre o pensamento e a realidade tivesse sido reduzido à simplicidade de um dualismo: a luz e a treva, a fonte e o eco: a sombra como mitigação, como rugosa suavidade. A pintura, o desenho, tem às vezes necessidade de diluição, para ser mais cruel na sua nudez. Lawrence Durrell, o famoso escritor irlandês, pintor também, ainda que menos famoso, sob o nome de Oscar Epfs, afirmou algures, com razão: «L’essenciel est de rincer la peinture.» Os desenhos de Jaime Silva aqui propostos são realidades mentais, formas criadas na intimidade da memória, que correspondem à pulsão de dar forma, ao fim e ao cabo, a algo que surge na distância do olhar, olhar que, ele mesmo, engendra as suas sombras. A própria distância é uma sombra, como há muito nos ensinaram Albrecht Dürer e Leonardo. «Caderno de Sombras» é, na especificidade do universo plástico de Jaime Silva, um excelente exemplo desse saber ponderar a distância, de apresentar as imagens como intersecções do nosso vibrar perceptivo e mental.

José Manuel de Vasconcelos